
Entenda a fundo quando usar o POC ou a entrega das chaves. Inclusive com o contexto da queda de braço entre CPC/CVM e IASB/IFRIC.
No post da semana passada, vimos a partir de quando começar a reconhecer as receitas. Também vimos os dois métodos de reconhecimento (POC ou entrega das chaves). E tudo isso foi visto distinguindo os serviços de construção civil e as vendas da atividade imobiliária. Agora vamos entender, mais a fundo, qual o método de reconhecimento utilizar, dependendo do seu contexto.
Quando utilizar cada método
A essa altura, você já sabe, mas é bom reprisar. O item 35 do CPC 47 fala das três hipóteses em que se utiliza o reconhecimento da receita ao longo do tempo. São as seguintes:
- (a) o cliente recebe e consome os benefícios gerados pelo que a empresa faz à medida que a empresa vai executando. Ou seja, aproveita o benefício simultaneamente com a execução;
- (b) o que a empresa faz cria ou melhora o ativo que o cliente controla à medida que a empresa executa;
- (c) o que a empresa faz cria um ativo exclusivo do cliente (ou seja, não tem uso alternativo); e a empresa tem direito de cobrar pelo tanto que foi executado até aquele momento.
Se o formato de operação se enquadra num dos três itens acima, aplica-se a receita ao longo do tempo (POC). Se o formato de operação não se enquadra em nenhum deles, aplica-se a receita em ponto específico no tempo (entrega das chaves). Aprofundando um pouco a interpretação desses três tópicos, temos:
Cliente consome os benefícios à medida que a empresa executa
Para um serviço como administração de obra, o item (a) se aplica bem. Afinal, conforme a obra vai sendo administrada, o benefício daquilo já impacta o cliente. Não tem como “desadministrar”. Você não pode dar um “ctrl+z” e pronto.
Empresa executa um ativo de uso exclusivo e com direito executável de cobrança
No item (c), parece-me que serviços de construção e empreitada se enquadram facilmente. Um ativo é dito como de uso exclusivo (sem uso alternativo) quando não pode ser destinado a outra coisa livremente. Quando a empreiteira constrói um galpão para seu cliente, por exemplo. Ela não pode simplesmente direcionar o galpão para outro cliente e falar “ah, eu faço outro pra você”. Isso é não ter uso alternativo.
Além disso, é necessário outra característica: direito executável de cobrança, chamado de enforcement. Isso é o direito de cobrar até a parte executada. Nas empreitadas isso é recorrente, inclusive com previsão contratual de faturar conforme medição da obra.
Cliente controla o ativo à medida que a empresa o cria/melhora
Deixei o item (b) por último de propósito. Na minha opinião pessoal, esse é o caso da construção para venda de imóveis. Construção para venda, incorporação e loteamento, pela minha interpretação, se encaixa aqui. Pelo menos analisando o cenário brasileiro.
Isso ocorre porque no Brasil, a venda de imóveis em construção não é uma “opção de compra”. Mesmo um instrumento particular de promessa de compra e venda tem força de contrato. Com base nele, o adquirente pode exigir que a unidade autônoma, ao final, seja transferida para seu nome.
Já em outros países, a atividade de incorporação (real state) trabalha com contratos financeiros. Neles, a pessoa investe um valor em dinheiro com a garantia de que receberá o dinheiro corrigido. Contudo, há cláusula de opção de compra: no final do empreendimento, a pessoa pode optar por um imóvel ao invés de seu dinheiro corrigido. Percebe como é bem diferente a dinâmica entre os dois contextos?
Como decidir qual método utilizar?
Uma das minhas regras de ouro é a de que ninguém sabe tudo. Por isso, você não tem motivo algum para acreditar cegamente no que eu escrevo pra você. Também não tem porque achar que minha interpretação é a mais correta… até porque eu não sei do contexto específico das suas operações.
Por essas e outras, eu vou compartilhar agora com você algumas informações. Com elas, você vai ter uma base sólida para tomar a decisão mais acertada para seu caso específico. Pode ser reconhecer pela entrega das chaves, pode ser pelo POC e tá tudo bem, nossa amizade continua, ok? O mais importante é que você tenha conhecimento para ter autonomia na sua tomada de decisão.
Comitê de Pronunciamentos Contábeis (parte 1)
O CPC (Comitê de Pronunciamentos Contábeis) tem uma orientação técnica, a OCPC 04. Nessa orientação técnica, o Comitê fala sobre reconhecer a receita das incorporadoras por POC ou entrega das chaves. Ela é anterior ao CPC 47, mas ainda está vigente (infelizmente). Isso porque a discussão sobre esse reconhecimento é sempre muito calorosa e nunca agrada Gregos e Troianos.
No texto original da OCPC 04, o Comitê orienta que se utilize o POC para a atividade imobiliária. Apesar de não estar atualizada, eu sugiro a leitura dessa orientação. Isso porque o CPC elenca várias características que denotam um reconhecimento de receita ao longo do tempo. Fala-se sobre a força do instrumento particular, sobre o direito do adquirente sobre o imóvel (mesmo na planta), sobre a falta de autonomia do incorporador após ter vendido… enfim, há uma série de argumentos interessantes de se conhecer.
Comitê de Pronunciamentos Contábeis (parte 2)
Aí com a vigência do CPC 47 desde 2018, o CPC deveria ter publicado a revisão da OCPC 04. Até saiu uma minuta, mas o Comitê ficou super em cima do muro. Sugiro que você leita essa minuta, para se contextualizar, mas basicamente ela diz o seguinte:
- Em várias situações, é evidente a necessidade de aplicar o POC;
- Porém, pode ter situações em que não se aplique;
- Então cada entidade deve avaliar seu contexto específico.
Mais em cima do muro, impossível, né? Como eu costumo dizer em meus cursos, essa revisão da OCPC 04 que o Comitê fez poderia se resumir em “se vira! Toma que o filho é seu”.
IASB e IFRIC
As Normas Brasileiras de Contabilidade (NBC) são adaptadas e convergentes com os Padrões Internacionais de Contabilidade (IFRS). O Comitê brasileiro então resolveu enviar questionamento ao conselho internacional que faz a interpretação dos padrões internacionais de contabilidade. Só para detalhar a sopa de letrinhas, podemos dizer o seguinte:
- IASB é o conselho que elabora as normas internacionais ;
- IFRIC é o conselho que interpreta as normas internacionais e publica estas interpretações.
A interpretação do órgão internacional foi: utilizem a entrega das chaves.
CVM
A despeito do CPC em cima do muro e do IFRIC interpretando o reconhecimento da receita na entrega das chaves, a CVM se posicionou: vamos orientar o reconhecimento ao longo do tempo. Na visão da Comissão de Valores Mobiliários, o reconhecimento pelo POC é muito mais fidedigno com a realidade comercial e econômica das incorporadoras e loteadoras no Brasil.
De fato a CVM tem (assim como o CPC também) a prerrogativa de se posicionar no cenário nacional de acordo com suas particularidades. O que eu acho esquisito é o desgaste desnecessário. Cá entre nós, só pergunta quem quer resposta, certo?
Algumas considerações
Por fim, depois dessa contextualização toda, algumas considerações minhas.
A norma dá liberdade para análise do caso concreto da entidade. Essa é a essência do CPC 47 (bem como de suas versões internacionais IFRS 15 e ASC 606). Assim, parece-me importante entender que todas as publicações de orientação tratadas aqui (CPC, CVM e IFRIC) tem essa função: ORIENTAR. Ninguém colocou uma arma na cabeça do contador e disse “use o POC ou morra”. Assim, se na análise do conjunto da obra, a entidade perceber que um método é mais fidedigno que o outro, aplique o CPC 47 corretamente, seja pelo POC ou pela entrega das chaves.
Além disso, mesmo que se reconheça a receita pelo POC, é necessário avaliar se realmente há todas as características de um contrato. Entre elas está a alta probabilidade de receber por ele, assim como a intenção das partes em cumprir o contrato. Num ambiente de alta probabilidade de distratos, pode ser que o POC não seja o melhor caminho. Mas, se ainda assim for, os ativos e passivos de restituição devem ser medidos, para que você não saia reconhecendo receita no piloto automático e depois fique fazendo reversão por conta de distratos que eram altamente previsíveis.
Enfim… o post ficou longo, eu sei. Mas o conteúdo é importante para que você esteja atento ao que há de mais atual na contabilidade imobiliária, que é um dos meus compromissos com você.
Gostou? Gerou dúvidas? Não concorda? Comente aí, eu vou ficar muito feliz em trocar uma ideia com você!